Entrevista Lia Diskin: “Todo excesso provoca desequilíbrio”
"A suposta riqueza que geramos acaba por empobrecer nossas vidas" / Foto: Divulgação
Em conversa com o Portal EcoDesenvolvimento.org, Lia falou sobre a atual situação do homem e sua relação com planeta, e compartilhou suas visões sobre consciência, cidadania e busca pela paz.
Portal EcoDesenvolvimento.org: A senhora uma vez afirmou que estamos “caindo na real” sobre a nossa situação atual com o planeta e que essa desilusão será saudável para a humanidade. Como a senhora vê esse momento de turbulências e buscas (talvez um pouco tardia) por soluções, e como esse processo pode ser benéfico para a sociedade?
Conselheira do Comitê Internacional Pró-Tibet |
Responsável pelas visitas do Dalai Lama ao Brasil |
Membro do Fundo Mundial para a Natureza |
Coordenadora do Comitê Paulista para a Década da Cultura de Paz |
Vencedora do Prêmio Internacional da Jamnalal Bajaj Foundation e do Prêmio Transformadores da revista Trip |
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A consciência é um primeiro passo essencial para nos levar à ação transformadora.”
Lia Diskin
Ainda vivemos em uma sociedade onde se busca acumular bens, ostentar riquezas, ressaltar individualismos, tudo de forma imediata. Qual o impacto disso?
O impacto é suicida. A suposta riqueza que geramos acaba por empobrecer nossas vidas. Um exemplo interessante para se analisar é a presença dos carros nas grandes cidades – a quantidade exagerada de veículos simplesmente inviabiliza o deslocamento das pessoas, polui o ar a níveis considerados perigosos à saúde, é fonte de ruído constante, dia e noite, prejudicando a qualidade do sono das pessoas e, em longo prazo, sua audição. Conclusão: o estresse é de longe a queixa mais frequente dos cidadãos, que acabam por ser consumidores dependentes de ansiolíticos, analgésicos e medicamentos para problemas estomacais.
A cada ação corresponde uma reação de igual intensidade, como nos ensinou a física clássica. Todo excesso provoca desequilíbrio. Quando o repertório de valores que uma sociedade cultiva está em descompasso com a rede de Vida à qual pertencemos, as consequências sempre são dolorosas. Temos nos esquecido de que integramos um único sistema Vivo, com suas infinitas ligações, variáveis e potencialidades. Fora dessa rede, nada se sustenta.O mercado, a mídia e outras instituições sociais reforçam diariamente essas questões e confundem nas mentes a diferença entre necessidade e desejo. É possível vencer isso e criar uma consciência coletiva capaz de modificar o comportamento das pessoas em nível global? Como?
Não acredito que em curto prazo tenhamos essa possibilidade de conscientizar o planeta inteiro. Isso requer uma mudança de modelo civilizatório: deixar de privilegiar o poder, o domínio e o controle para dar lugar à parceria, ao compartilhamento, à solidariedade. Alguns sinais significativos já estão em curso: nossas crianças já recebem conhecimentos sobre ecologia, sustentabilidade e valor nutricional dos alimentos desde as creches. Os que hoje são adultos não receberam tais informações nos bancos escolares. Nossos jovens já começam a questionar seriamente o uso do carro, muitos estão aderindo à bicicleta para se locomover nas cidades e, quando isso não é possível, optam por transporte público ou carona solidária. O movimento mundial de ações humanitárias desloca jovens da classe média e alta para regiões e comunidades em estado de penúria ou calamidade natural. Muitos abrem mão de suas férias para oferecer ajuda aos necessitados. O mesmo podemos observar em empresários bem-sucedidos ou famílias abastadas que criam fundações de amparo, projetos de empreendedorismo ou assistência direta, e se envolvem pessoalmente nas ações, antes delegadas a entidades religiosas ou do terceiro setor.
A resposta para nossos dilemas está no desprendimento, na simplicidade, na liberdade (material, espiritual, de valores e sentimentos)?
Talvez as respostas passem também pela ampliação de nossos conhecimentos. As visões sistêmicas que hoje estão permeando a biologia, a antropologia, a medicina e mesmo a educação são unânimes em apontar a necessidade de integrarmos natureza e cultura, corpo e mente, matéria e espírito. Sabemos que essa separação ou fragmentação da realidade foi uma armadilha montada pela nossa arrogância, cujas consequências estamos procurando reparar.
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A suposta riqueza que geramos acaba por empobrecer nossas vidas.”
Lia Diskin
Sim, existe um movimento visível de retorno. Você pode vê-lo refletido no lugar menos esperado: na publicidade. A oferta de produtos hoje está associada a uma mensagem, nem sempre autêntica, mas que afirma a responsabilidade com o meio ambiente, o benefício social que promove, o respeito com o consumidor, destaca os valores familiares, o cuidado, a dimensão afetiva, condena o desperdício e busca um vínculo de fidelidade. Esse é um repertório novo, muito menos impositivo, mais humilde e consciente do poder que o consumidor detém.
Algumas pessoas defendem que, com algumas adaptações, é possível tornar nosso estilo de vida mais sustentável, mas ainda mantendo princípios como o consumismo e a busca pela riqueza e conforto. Isso parece um pouco contraditório. É possível?
As mudanças duradouras nunca são radicais – ao menos é isso que nos mostra a história. E as mudanças acontecem, de fato, quando a realidade impõe dinâmicas que não conseguem se sustentar através dos processos ou ações vigentes. Portanto, a criatividade, a capacidade de inovar e confiar na experiência adaptativa de nossa espécie e de qualquer ser vivo podem contribuir para minimizar as resistências a tais mudanças, que possam a ser vistas não como ameaça, mas como adaptação necessária ao crescimento e ampliação de conhecimentos.
Segundo Lia, a violência do século 20 devastou as populações material e espiritualmente. Nesse cenário surgiram os primeiros estudos sobre a paz
O século 20 foi, sem dúvida, o mais violento da história humana. Em grande medida pela sofisticação e eficiência que os equipamentos de guerra ganharam, mas igualmente pela presença de três totalitarismos devastadores: nazismo, fascismo e stalinismo. Os três conseguiram a “proeza” de 111 milhões de mortos em combate direto. Cada soldado tem uma rede de relações: ele é filho de alguém, talvez marido, pai de família, possivelmente tem irmãos, amigos e colegas de profissão. Isso significa que muitos milhões mais foram atingidos pelas guerras que se sucederam na primeira metade do século passado.
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A violência beneficia a vários setores da sociedade. Contudo, ninguém está seguro ou em paz. Todos nós perdemos.”
Lia Diskin
Estas reflexões que se organizam em estudos sistematizados estão revelando a invisibilidade de certas violências, que se perpetuam simplesmente porque ninguém as denuncia como tais. Isto, o reconhecimento de comportamentos, atitudes e interações como sendo um obstáculo à convivência saudável e desejável, já é um avanço significativo que temos de celebrar e, mais, promover sua disseminação.
A senhora também já comentou que "a violência é a ausência do direito", e está presente especialmente entre os mais vulneráveis. Existem muitos interesses em manter essa estrutura, e muitos poderes capazes de fazer isso. Como fazer com que os que não conseguem impor seus direitos possam vencer essa situação e acabar com a violência?
Penso que a violência beneficia a vários setores da sociedade: desde logo a indústria bélica, a indústria farmacêutica que lucra cada vez mais com os antidepressivos e correlatos, os produtores de bebidas alcoólicas cuja ingestão abusiva provoca alterações comportamentais que dão a sensação de força, coragem, expansão e perda de medos ou escrúpulos (e, portanto, preparam para a violência). E, nas grandes cidades, a indústria da segurança, cujo crescimento nas duas últimas décadas quase que centuplicou. No Brasil de hoje a segurança privada conta com mais efetivos do que os integrantes das corporações policiais. Aliás, a indústria em geral ganha, pois, como sabemos, um indivíduo fragilizado tende a comprar para compensar suas carências – de segurança, de afeto, de tranqüilidade, etc.
Contudo, ninguém está seguro ou em paz. Todos nós perdemos. Os filhos dos empresários da indústria armamentista também têm de ir à escola, frequentar um clube, ir ao cinema. Esses lugares, por mais exclusivos que sejam, também se tornaram vulneráveis e potencialmente perigosos.
Perceber em profundidade leva a superar “verdades” que se enraizaram através do preconceito através da reiteração pelos meios de comunicação, que distorcem os fatos e caricaturam situações e personagens a serviço de interesses escusos.
O que é “sustentabilidade” para a senhora?
É participar das limitações e oportunidades que nos oferece a teia da Vida e, fazendo eco a Confúcio, quando nos disse: “Nada é o bastante para quem considera pouco o que é suficiente”. É valorizar e agradecer aquilo que se nos oferece com a chegada de cada dia.
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