quarta-feira, 19 de setembro de 2012

TODO EXCESSO PROVOCA DESEQUILIBRIO….


Entrevista Lia Diskin: “Todo excesso provoca desequilíbrio”

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"A suposta riqueza que geramos acaba por empobrecer nossas vidas" / Foto: Divulgação
Nascida na Argentina, descendente de búlgaros e russos e radicada no Brasil desde 1971, a jornalista Lia Diskin se tornou um dos maiores nomes quando o assunto é estudos pela cultura de paz. Especialista em técnicas de meditação e em filosofia budista na Índia, teve o Dalai Lama como um de seus professores e hoje se dedica à Associação Palas Athena, um centro de estudos filosóficos sem fins lucrativos dedicado à educação e à assistência social, do qual é co-fundadora.
Em conversa com o Portal EcoDesenvolvimento.org, Lia falou sobre a atual situação do homem e sua relação com planeta, e compartilhou suas visões sobre consciência, cidadania e busca pela paz.
Portal EcoDesenvolvimento.org: A senhora uma vez afirmou que estamos “caindo na real” sobre a nossa situação atual com o planeta e que essa desilusão será saudável para a humanidade. Como a senhora vê esse momento de turbulências e buscas (talvez um pouco tardia) por soluções, e como esse processo pode ser benéfico para a sociedade?
Conselheira do Comitê Internacional Pró-Tibet
Responsável pelas visitas do Dalai Lama ao Brasil
Membro do Fundo Mundial para a Natureza
Coordenadora do Comitê Paulista para a Década da Cultura de Paz
Vencedora do Prêmio Internacional da Jamnalal Bajaj Foundation e do Prêmio Transformadores da revista Trip
Lia Diskin: Hoje dispomos de informações suficientes para saber que os quase sete bilhões de habitantes da Terra consomem por ano o equivalente a 1,4 vezes os recursos existentes e oferecidos pelo planeta. Sabemos também que 23% da energia global é consumida pelos Estados Unidos, cujo número de habitantes representa apenas 5% da população mundial, e que se todos consumíssemos nos níveis dos americanos, precisaríamos de 5,4 planetas Terra para nos sustentar. Portanto, a equação não fecha – temos de reduzir o consumo, deixar de desperdiçar recursos que são vitais para países e comunidades que sequer têm acesso a água potável ou alimento suficiente para atender suas necessidades mais básicas. Mais uma vez, nos Estados Unidos 27% dos alimentos oferecidos para consumo acabam na lata do lixo, e se um quarto desses alimentos pudesse ser aproveitado teríamos saciado a fome de 20 milhões de pessoas por dia!
A consciência é um primeiro passo essencial para nos levar à ação transformadora.”
Lia Diskin
Ainda vivemos em uma sociedade onde se busca acumular bens, ostentar riquezas, ressaltar individualismos, tudo de forma imediata. Qual o impacto disso?
O impacto é suicida. A suposta riqueza que geramos acaba por empobrecer nossas vidas. Um exemplo interessante para se analisar é a presença dos carros nas grandes cidades – a quantidade exagerada de veículos simplesmente inviabiliza o deslocamento das pessoas, polui o ar a níveis considerados perigosos à saúde, é fonte de ruído constante, dia e noite, prejudicando a qualidade do sono das pessoas e, em longo prazo, sua audição. Conclusão: o estresse é de longe a queixa mais frequente dos cidadãos, que acabam por ser consumidores dependentes de ansiolíticos, analgésicos e medicamentos para problemas estomacais.
A cada ação corresponde uma reação de igual intensidade, como nos ensinou a física clássica. Todo excesso provoca desequilíbrio. Quando o repertório de valores que uma sociedade cultiva está em descompasso com a rede de Vida à qual pertencemos, as consequências sempre são dolorosas. Temos nos esquecido de que integramos um único sistema Vivo, com suas infinitas ligações, variáveis e potencialidades. Fora dessa rede, nada se sustenta.
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Para Lia, a nova geração está mais preparada para gerir um mundo sustentável / Foto: Gavin Stewart
O mercado, a mídia e outras instituições sociais reforçam diariamente essas questões e confundem nas mentes a diferença entre necessidade e desejo. É possível vencer isso e criar uma consciência coletiva capaz de modificar o comportamento das pessoas em nível global? Como?
Não acredito que em curto prazo tenhamos essa possibilidade de conscientizar o planeta inteiro. Isso requer uma mudança de modelo civilizatório: deixar de privilegiar o poder, o domínio e o controle para dar lugar à parceria, ao compartilhamento, à solidariedade. Alguns sinais significativos já estão em curso: nossas crianças já recebem conhecimentos sobre ecologia, sustentabilidade e valor nutricional dos alimentos desde as creches. Os que hoje são adultos não receberam tais informações nos bancos escolares. Nossos jovens já começam a questionar seriamente o uso do carro, muitos estão aderindo à bicicleta para se locomover nas cidades e, quando isso não é possível, optam por transporte público ou carona solidária. O movimento mundial de ações humanitárias desloca jovens da classe média e alta para regiões e comunidades em estado de penúria ou calamidade natural. Muitos abrem mão de suas férias para oferecer ajuda aos necessitados. O mesmo podemos observar em empresários bem-sucedidos ou famílias abastadas que criam fundações de amparo, projetos de empreendedorismo ou assistência direta, e se envolvem pessoalmente nas ações, antes delegadas a entidades religiosas ou do terceiro setor.
A resposta para nossos dilemas está no desprendimento, na simplicidade, na liberdade (material, espiritual, de valores e sentimentos)?
Talvez as respostas passem também pela ampliação de nossos conhecimentos. As visões sistêmicas que hoje estão permeando a biologia, a antropologia, a medicina e mesmo a educação são unânimes em apontar a necessidade de integrarmos natureza e cultura, corpo e mente, matéria e espírito. Sabemos que essa separação ou fragmentação da realidade foi uma armadilha montada pela nossa arrogância, cujas consequências estamos procurando reparar.
A suposta riqueza que geramos acaba por empobrecer nossas vidas.”
Lia Diskin
O ser humano se distanciou do essencial, da sua natureza, do contato com o meio ambiente, e acabou se perdendo em meio a isso. Existe um movimento de retorno? Quais as consequências disso?
Sim, existe um movimento visível de retorno. Você pode vê-lo refletido no lugar menos esperado: na publicidade. A oferta de produtos hoje está associada a uma mensagem, nem sempre autêntica, mas que afirma a responsabilidade com o meio ambiente, o benefício social que promove, o respeito com o consumidor, destaca os valores familiares, o cuidado, a dimensão afetiva, condena o desperdício e busca um vínculo de fidelidade. Esse é um repertório novo, muito menos impositivo, mais humilde e consciente do poder que o consumidor detém.
Algumas pessoas defendem que, com algumas adaptações, é possível tornar nosso estilo de vida mais sustentável, mas ainda mantendo princípios como o consumismo e a busca pela riqueza e conforto. Isso parece um pouco contraditório. É possível?
As mudanças duradouras nunca são radicais – ao menos é isso que nos mostra a história. E as mudanças acontecem, de fato, quando a realidade impõe dinâmicas que não conseguem se sustentar através dos processos ou ações vigentes. Portanto, a criatividade, a capacidade de inovar e confiar na experiência adaptativa de nossa espécie e de qualquer ser vivo podem contribuir para minimizar as resistências a tais mudanças, que possam a ser vistas não como ameaça, mas como adaptação necessária ao crescimento e ampliação de conhecimentos.
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Segundo Lia, a violência do século 20 devastou as populações material e espiritualmente. Nesse cenário surgiram os primeiros estudos sobre a paz 
Apesar desse cenário, também vivemos um momento em que diversas manifestações mundiais apontam para uma vontade coletiva pela cultura da paz. Algumas coisas parecem estar mudando. Existe algum dilema existencial nisso? De um lado, a ânsia pelo consumismo e prazer imediato, do outro, aspirações coletivas em busca da paz e equilíbrio com o planeta...
O século 20 foi, sem dúvida, o mais violento da história humana. Em grande medida pela sofisticação e eficiência que os equipamentos de guerra ganharam, mas igualmente pela presença de três totalitarismos devastadores: nazismo, fascismo e stalinismo. Os três conseguiram a “proeza” de 111 milhões de mortos em combate direto. Cada soldado tem uma rede de relações: ele é filho de alguém, talvez marido, pai de família, possivelmente tem irmãos, amigos e colegas de profissão. Isso significa que muitos milhões mais foram atingidos pelas guerras que se sucederam na primeira metade do século passado.
A violência beneficia a vários setores da sociedade. Contudo, ninguém está seguro ou em paz. Todos nós perdemos.”
Lia Diskin
A Europa inteira ficou devastada, material e espiritualmente. É nesse cenário que começaram a emergir os estudos sobre a paz. Criou-se a Organização das Nações Unidas (ONU) e, poucos anos depois, a UNESCO, cuja missão precípua é educar para a paz, a diversidade cultural, o diálogo entre as religiões e tradições espirituais. É a UNESCO que, na década de 1990, convocou as nações do mundo a refletirem sobre as múltiplas violências diárias que praticamos sem sequer nos apercebermos delas, nem as considerarmos propriamente violências. Humilhar alguém com palavras rudes e ironias, ignorar a presença de pessoas cujas profissões consideramos menores, tais como as que executam serviços domésticos, de limpeza, garis, lixeiros, engraxates, etc. Dar ordens a funcionários de forma autoritária ou chamar a atenção dos mesmos em público. Puxar a orelha ou dar palmada com propósitos “pedagógicos” que resultam em deseducação e expressão de abuso de poder.
Estas reflexões que se organizam em estudos sistematizados estão revelando a invisibilidade de certas violências, que se perpetuam simplesmente porque ninguém as denuncia como tais. Isto, o reconhecimento de comportamentos, atitudes e interações como sendo um obstáculo à convivência saudável e desejável, já é um avanço significativo que temos de celebrar e, mais, promover sua disseminação.
A senhora também já comentou que "a violência é a ausência do direito", e está presente especialmente entre os mais vulneráveis. Existem muitos interesses em manter essa estrutura, e muitos poderes capazes de fazer isso. Como fazer com que os que não conseguem impor seus direitos possam vencer essa situação e acabar com a violência?
Penso que a violência beneficia a vários setores da sociedade: desde logo a indústria bélica, a indústria farmacêutica que lucra cada vez mais com os antidepressivos e correlatos, os produtores de bebidas alcoólicas cuja ingestão abusiva provoca alterações comportamentais que dão a sensação de força, coragem, expansão e perda de medos ou escrúpulos (e, portanto, preparam para a violência). E, nas grandes cidades, a indústria da segurança, cujo crescimento nas duas últimas décadas quase que centuplicou. No Brasil de hoje a segurança privada conta com mais efetivos do que os integrantes das corporações policiais. Aliás, a indústria em geral ganha, pois, como sabemos, um indivíduo fragilizado tende a comprar para compensar suas carências – de segurança, de afeto, de tranqüilidade, etc.
Contudo, ninguém está seguro ou em paz. Todos nós perdemos. Os filhos dos empresários da indústria armamentista também têm de ir à escola, frequentar um clube, ir ao cinema. Esses lugares, por mais exclusivos que sejam, também se tornaram vulneráveis e potencialmente perigosos.
Perceber em profundidade leva a superar “verdades” que se enraizaram através do preconceito através da reiteração pelos meios de comunicação, que distorcem os fatos e caricaturam situações e personagens a serviço de interesses escusos.
O que é “sustentabilidade” para a senhora?
É participar das limitações e oportunidades que nos oferece a teia da Vida e, fazendo eco a Confúcio, quando nos disse: “Nada é o bastante para quem considera pouco o que é suficiente”. É valorizar e agradecer aquilo que se nos oferece com a chegada de cada dia.

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