sexta-feira, 21 de setembro de 2012

SOMOS TODOS DO MESMO TIME - POR FABIO BROTTO - PROJETO COOPERAÇÃO


                                 


Sociedade e Cooperação.

                                                                                Fábio Otuzi Brotto 
                                                          Projeto Cooperação – Comunidade de serviços

1. Somos Todos do Mesmo Time!

Atualmente, não é difícil perceber o quanto somos-estamos ligados uns aos outros. E não apenas ligados aos outros que são-estão próximos da gente, mas nos percebermos conectados intimamente com pessoas, situações, lugares e acontecimentos, aparentemente, muito distantes e sem relação direta com nossa vida.
Compreendemos que estamos Todos Juntos num mesmo Grande Jogo e que seja lá o que alguém pensa, sente, faz ou não faz, afeta todos os outros e é afetado por todo mundo, sem exceção. Esta conscientização da Interdependência como uma característica factual de nossa existência, pode nos ajudar a perceber o quanto de Cooperação é necessário resgatar para dar conta das questões que estamos vivendo neste momento, quer sejam, na sala de aula, no bairro onde moramos, no país em que vivemos, no planeta que habitamos ou no universo onde existimos.

Desde o “Apagão” em escala nacional, até os “Trovões” da guerra no estrangeiro; da poluição dos carros à corrupção dos cargos; do barulho na sala de aula ao silêncio desejado da hora do intervalo; da falta de água aos excessos da liquidez econômica; da violência dentro de casa à busca de Paz mundial; somos todos tocados diretamente por tudo que ocorre na vida de cada um, em todo e qualquer lugar e tempo.  

Cada pensamento, sentimento, sensação e ação ou não-ação de qualquer um, afeta - e é afetado por – todos os outros – Nós da Teia da Cooperação. 

Nós inter-somos na co-existência cotidiana!
Porém, nem sempre temos tido consciência dessa Interdependência tão à flor da pele. Por isso, penso ser importante dedicar boa parte do que fazemos na escola, no trabalho, na comunidade e na família, para recuperar a Consciência dessa nossa inteireza e re-ligação.

Em parte, essa não conscientização é conseqüência de uma visão fragmentada da realidade e da gente mesmo. Saber-se Interdependente é antes de tudo, renovar a visão que temos sobre as diferentes relações que estabelecemos com os outros. É exercitar nosso olhar, olhando por outras óticas e renovando a Ética de Comum-Unidade no cotidiano. 

Creio que exercitando o olhar para além da superfície e das aparências, podemos aperfeiçoar nossas Co-Opetências (competências compartilhadas) para ver o que há de comum na diferença, o que há de proximidade no distanciamento e, especialmente, o que há de solidário no adversário. 

Contudo, nem sempre estamos abertos e sensíveis para perceber as relações de interdependência entre nós. “Não somente porque essas relações de interdependência não são objetos físicos visíveis aos olhos, mas fundamentalmente porque nem os nossos olhos e nem as nossas mentes   foram preparados e educados para vê-las” . Podemos reconhecer isto em algumas situações vividas no dia-a-dia, como por exemplo, no seguinte relato:

“A jovem mãe estava num carro de luxo encostado no Canal 4, com certeza esperando alguém. No banco de trás, uma criança de seus 3 a 4 anos brincava com uma bola. Os vidros estavam abertos no domingo de manhã. De repente, a bola pulou para fora do carro e rolou por entre os veículos que trafegavam na avenida. A menina começou a gritar. Um rapaz, sentado à beira do canal, de no máximo 18 anos, descalço e com camisa puída, levantou-se imediatamente e saiu atrás da bola, arriscando-se a um atropelamento. Vitorioso com o feito, sorrindo de orelha a orelha, trouxe  o brinquedo e devolveu-o à menina que, quando viu sua bola, batia palmas de alegria e entusiasmo. A mãe sequer olhou para o rapaz. Mexeu na bolsa, tirou uma moeda (não deu para ver quanto) e disse: ‘filha, dê o dinheiro para o mendigo’. Parado ao lado do carro, deu para ouvir o rapaz responder ‘não, minha senhora, eu não sou um mendigo, sou apenas pobre, não quero dinheiro, só fiz uma gentileza. Dá para a senhora entender isso?.”  

Para entender essa “gentileza” vinda de estranhos, é necessário limpar a lente que temos usado para enxergar uns aos outros e assim, nos liberar da “Ilusão de Separatividade”   e recuperar a Visão de Comum-Unidade para nos percebermos como partes uns dos outros.
Além dessa fragmentação na educação de nossos olhares e mentes, podemos reconhecer outros obstáculos à Interdependência real, como por exemplo: 

  • “Quanto maior é a extensão do sistema social, os efeitos, benéficos ou perversos das  ações e omissões levam mais tempo para retornar a sua origem e tocar os agentes” 

Especialmente nos grandes centros urbanos, a sensação de distanciamento é tão acentuada que por vezes nos leva a considerar os acontecimentos como cenas de um filme que assistimos e que jamais protagonizaremos.
Nesse sentido, podemos desenvolver iniciativas para a reaproximação de pessoas e grupos que nos ajudem perceber cada ocorrência, cada fato, como fenômenos pertencentes à realidade da qual somos e fazemos parte. 
Penso que podemos criar pontos de ressonância na sociedade, pequenos grupos comunitários servindo como elos de ligação para comunicar com maior agilidade e fidedignidade os efeitos das diferentes intenções e ações que se manifestam no sistema. 
Tomar cuidado, zelar pelo campo de nossa co-existência deve ser uma atenção permanente, porque havemos ainda de considerar mais um bloqueio à Consciência de Interdependência:

  • A distribuição desigual dos efeitos benéficos e maléficos no interior do sistema, impede que exista uma mobilização interdependente de indivíduos e grupos. Em outras palavras, nem todos são afetados no mesmo instante e com a mesma intensidade.  

Diante destes bloqueios -  e de tantos outros - à Interdependência como um fato, é preciso continuar olhando mais atenta, ampla e profundamente a vida, para podermos enxergar as relações de interdependência existentes entre tudo e todos. 

Ultrapassar essa “crise de percepção”, interdepende da nossa disposição em reconhecer que somos-e-estamos realmente interligados uns aos outros. 
Este é o primeiro passo para Exercitar a Paz-Ciência da Cooperação, ou seja, reconhecer a Cooperação não somente como um princípio, um valor ético, mas antes disto, compreendê-la como uma característica essencial da Vida e como uma condição para a vida na sociedade humana, característica essa, presente em nós desde os primeiros movimentos de nossa espécie pela Terra.


2. Cooperação

O desenvolvimento da Cooperação como um exercício de co-responsabilidade para o aprimoramento das relações humanas em todas as suas dimensões e nos mais diversificados contextos, deixou de ser apenas uma tendência, passou a ser uma necessidade e em muitos casos, já é um fato consumado  
Porém, não é definitivo.
É preciso nutrir e sustentar permanentemente o processo de integração da Cooperação no cotidiano pessoal, comunitário e planetário, reconhecendo-a como um “estilo de vida”, uma conduta ética vital, que esteve consciente ou inconscientemente, presente ao longo da história de nossa civilização. 
Contrariando o mito da competição como forma de garantir a sobrevivência e evolução humana, existe um conjunto amplo de evidências indicando que os povos pré-históricos, “que viviam juntos, colhendo frutas e caçando, caracterizavam-se pelo mínimo de destrutividade e o máximo de cooperação e partilha dos seus bens” . 
Ainda hoje, podemos encontrar culturas cooperativas em várias sociedades ancestrais existentes no planeta. Isto pode indicar uma boa reflexão sobre a natureza competitiva do ser humano, pois se essa idéia fosse totalmente verdadeira, seria lógico encontrar nas comunidades ancestrais (representantes da porção mais natural da nossa espécie), traços de uma cultura predominantemente, competitiva. Diferentemente disso, tem-se descoberto indícios de uma Cooperação quase que genética, como um ingrediente imprescindível para surgimento e evolução da Vida. 
Erich Fromm  , analisou trinta culturas primitivas e as classificou com base na agressividade-competitiva e no pacifismo-cooperativo. Ora, se existem sociedades humanas pacíficas e cooperativas, e outras agressivas e competitivas, podemos inferir que se há uma natureza humana possível de ser afirmada, esta seria uma natureza de possibilidades
A antropóloga Margaret Mead , depois de ter analisado diferentes sociedades concluiu que, os vários graus de competição e cooperação existentes, são determinados pelas respectivas estruturas sociais.  Considerando essa estrutura social como resultado das ações e relações dos membros de um grupo social, compreendo a  Cooperação e a Competição como desdobramentos das nossas escolhas, decisões e atitudes praticadas na interação com outros indivíduos num pequeno grupo, comunidade, sociedade, país ou no ambiente das relações internacionais.
Somos socializados e socializamos os outros para a Cooperação e Competição através da educação, da cultura e da informação. Portanto, tornar a sociedade Solidário-Cooperativa ou Solitário-Competitiva é uma ação política, isto é, uma arte pessoal e coletiva capaz de realizar o melhor (im)possível para todos.
Ainda de acordo com Humberto Maturana  , os seres humanos não são apenas animais políticos, mas, sobretudo  “animais cooperativos”. Para ele, a cooperação é central na maneira humana de viver, como uma característica de vida cotidiana fundamentada na confiança e no respeito mútuo. 
Isto talvez, nos ajude a entender um pouco melhor as dificuldades apresentadas por indivíduos e grupos que se dispõe a cooperar.  Porque confiança é algo a ser construído e permanentemente nutrido. Confiar é estabelecer um pacto de cumplicidade e de uma certa maneira, entregar o destino da própria vida, nas mãos uns dos outros.
Estivemos durante muito tempo, nos educando, treinando, nos preparando para não nos mostrarmos aberta e autenticamente ao outro. Aprendemos a dissimular, não nos expormos como somos mesmo, sob o risco de ao faze-lo, revelar nossas “fraquezas” e então sermos atacados e derrotados pelos “temíveis adversários”... os outros seres humanos.
Podemos despertar dessa ilusão e olhar mais claramente sobre essa pseudo-ameaça – a presença do outro - que imaginamos estar nos cercando. Podemos fazer crescer nossa habilidade de fazer contato e nos integrarmos mutuamente. 
Cooperação, confiança e respeito mútuo parecem ser um dos alicerces principais para a co-evolução humana. No entanto, precisamos reaprende-los, desenvolvendo o interesse pelo bem comum e o compromisso com uma Paz-Ciência da Cooperação exercitada no cotidiano.  


3. Um Jogo de Paz-Ciência

Considerando a Interdependência como um Fato da vida e a Cooperação como um Princípio, podemos imaginar a Paz como um Exercício diário, onde podemos aprender a harmonizar conflitos, balancear desequilíbrios, transformar crises e abraçar confrontos.
Desenvolver e praticar a Paz, significa assumir um pacto de co-responsabilidade, gerador de um im-pacto de eco-evolutividade, através do aperfeiçoamento da nossa habilidade de cooperar uns com os outros, gerando ordem na desordem (cosmos-no-caos), solidariedade na adversidade, companheirismo no individualismo e cooperação na competição. 
Se no passado mais remoto valorizamos demasiadamente o coletivo em detrimento do indivíduo, a partir da modernidade, quase que invertemos essa relação. Acentuamos o individualismo, contrapondo-o à dimensão gregária e mais solidária da sociedade humana.
De uma maneira ou de outra, tivemos posturas opostas que, exacerbadas, nos separaram da natureza, uns dos outros e da gente mesmo, nos levando a ver-e-viver a Ilusão de sermos isolados de tudo e de todos, tendo a competição como a principal estratégia para continuarmos existindo. 
Neste momento, estamos sentindo a necessidade-oportunidade de buscar um ponto de harmonia nessas relações, um caminho do meio, um centro de interesse como-um... uma Paz-Ciência da Cooperação.
Reconhecendo que somos partes de um mesmo todo, como se fossemos jogadores de um mesmo e único Time chamado Humanidade, podemos passar a realizar jogadas Solidárias e não mais solitárias; viver lances de Cumplicidade, ao invés de re-lances de egoísmo e separatividade. 

Todos podemos participar deste Jogo de Paz-Ciência da Cooperação
pois nele:

  • Não há seleção dos melhores. Cada um é vital para o Jogo do momento.
  • Não há primeiro nem último lugar. Há um lugar Como-Um.
  • Não há vencedores nem perdedores. Todos jogam Juntos.
  • Não há adversários. Somos todos parceiros de uma mesma jornada.
  • Não há troféus, nem medalhas. Já ganhamos tudo o que precisávamos ter... 
  • Sabemos que a verdadeira conquista é poder continuar jogando uns com os outros para VenSer... Feliz!

Somos como Há-Gentes da Paz-Ciência da Cooperação, ousando ir além, sem saber com quem, vivendo a (in)certeza da eterna descoberta e ultrapassando as fronteiras ilusórias que nos separam e distanciam. Sendo assim, às vezes, ainda, podemos ser vistos como românticos, quiméricos ou ingênuos... Não nos importemos. 

Somos tudo isso sim, que bom! 
Sigamos sendo In-Genuos... mesmo. Isto é, refletindo nos inteiros-ambientes de nossa Comum-Unidade, o que é genuíno dentro da gente: 

A Confiança na Beleza e no Poder do Som-Tom-Dom-Com que trazemos no coração, algo essencial para servir ao florescer de mais um tempo de Paz...ConsCiência...  
e Cooperação para construir um mundo onde todos podem VenSer... Feliz!


1 ASSMANN, Hugo e SUNG, Jung Mo. Competência e sensibilidade solidária: Educar para a esperança. 2a. ed. Petrópolis, RJ : Vozes,  2000.
2 SANTANA, Luiz Gonzaga Alca – Jornal “A Tribuna”, Santos, out/2001.
3 WEIL, Pierre. A  neurose do paraíso perdido. São Paulo : Espaço e  Tempo : Cepa, 1987. 
4 MARIOTTI, Humberto. As paixões do Ego: complexidade, política e solidariedade. São Paulo : Palas Athena, 2000.
5 HENDERSON, Hazel. Construindo um mundo onde todos ganhem: a vida depois da guerra da economia global. São Paulo : Cultrix, 1996.
6 ORLICK, Terry. Vencendo a Competição. São Paulo : Ed. Círculo do Livro, 1989, p. 17.
7 FROMM, Erich. A anatomia da destrutividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
8 MEAD, Margaret. Cooperation and competition among primitive people. Boston : Beacon, 1961.
9 MATURANA, Humberto R. Emociones y lenguaje en educacion y politica. Santiago: Hachete, 1990.

(*) Texto originalmente publicado no livro: Circulando Cooperação. Santos : Projeto Cooperação, 2003.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

TODO EXCESSO PROVOCA DESEQUILIBRIO….


Entrevista Lia Diskin: “Todo excesso provoca desequilíbrio”

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"A suposta riqueza que geramos acaba por empobrecer nossas vidas" / Foto: Divulgação
Nascida na Argentina, descendente de búlgaros e russos e radicada no Brasil desde 1971, a jornalista Lia Diskin se tornou um dos maiores nomes quando o assunto é estudos pela cultura de paz. Especialista em técnicas de meditação e em filosofia budista na Índia, teve o Dalai Lama como um de seus professores e hoje se dedica à Associação Palas Athena, um centro de estudos filosóficos sem fins lucrativos dedicado à educação e à assistência social, do qual é co-fundadora.
Em conversa com o Portal EcoDesenvolvimento.org, Lia falou sobre a atual situação do homem e sua relação com planeta, e compartilhou suas visões sobre consciência, cidadania e busca pela paz.
Portal EcoDesenvolvimento.org: A senhora uma vez afirmou que estamos “caindo na real” sobre a nossa situação atual com o planeta e que essa desilusão será saudável para a humanidade. Como a senhora vê esse momento de turbulências e buscas (talvez um pouco tardia) por soluções, e como esse processo pode ser benéfico para a sociedade?
Conselheira do Comitê Internacional Pró-Tibet
Responsável pelas visitas do Dalai Lama ao Brasil
Membro do Fundo Mundial para a Natureza
Coordenadora do Comitê Paulista para a Década da Cultura de Paz
Vencedora do Prêmio Internacional da Jamnalal Bajaj Foundation e do Prêmio Transformadores da revista Trip
Lia Diskin: Hoje dispomos de informações suficientes para saber que os quase sete bilhões de habitantes da Terra consomem por ano o equivalente a 1,4 vezes os recursos existentes e oferecidos pelo planeta. Sabemos também que 23% da energia global é consumida pelos Estados Unidos, cujo número de habitantes representa apenas 5% da população mundial, e que se todos consumíssemos nos níveis dos americanos, precisaríamos de 5,4 planetas Terra para nos sustentar. Portanto, a equação não fecha – temos de reduzir o consumo, deixar de desperdiçar recursos que são vitais para países e comunidades que sequer têm acesso a água potável ou alimento suficiente para atender suas necessidades mais básicas. Mais uma vez, nos Estados Unidos 27% dos alimentos oferecidos para consumo acabam na lata do lixo, e se um quarto desses alimentos pudesse ser aproveitado teríamos saciado a fome de 20 milhões de pessoas por dia!
A consciência é um primeiro passo essencial para nos levar à ação transformadora.”
Lia Diskin
Ainda vivemos em uma sociedade onde se busca acumular bens, ostentar riquezas, ressaltar individualismos, tudo de forma imediata. Qual o impacto disso?
O impacto é suicida. A suposta riqueza que geramos acaba por empobrecer nossas vidas. Um exemplo interessante para se analisar é a presença dos carros nas grandes cidades – a quantidade exagerada de veículos simplesmente inviabiliza o deslocamento das pessoas, polui o ar a níveis considerados perigosos à saúde, é fonte de ruído constante, dia e noite, prejudicando a qualidade do sono das pessoas e, em longo prazo, sua audição. Conclusão: o estresse é de longe a queixa mais frequente dos cidadãos, que acabam por ser consumidores dependentes de ansiolíticos, analgésicos e medicamentos para problemas estomacais.
A cada ação corresponde uma reação de igual intensidade, como nos ensinou a física clássica. Todo excesso provoca desequilíbrio. Quando o repertório de valores que uma sociedade cultiva está em descompasso com a rede de Vida à qual pertencemos, as consequências sempre são dolorosas. Temos nos esquecido de que integramos um único sistema Vivo, com suas infinitas ligações, variáveis e potencialidades. Fora dessa rede, nada se sustenta.
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Para Lia, a nova geração está mais preparada para gerir um mundo sustentável / Foto: Gavin Stewart
O mercado, a mídia e outras instituições sociais reforçam diariamente essas questões e confundem nas mentes a diferença entre necessidade e desejo. É possível vencer isso e criar uma consciência coletiva capaz de modificar o comportamento das pessoas em nível global? Como?
Não acredito que em curto prazo tenhamos essa possibilidade de conscientizar o planeta inteiro. Isso requer uma mudança de modelo civilizatório: deixar de privilegiar o poder, o domínio e o controle para dar lugar à parceria, ao compartilhamento, à solidariedade. Alguns sinais significativos já estão em curso: nossas crianças já recebem conhecimentos sobre ecologia, sustentabilidade e valor nutricional dos alimentos desde as creches. Os que hoje são adultos não receberam tais informações nos bancos escolares. Nossos jovens já começam a questionar seriamente o uso do carro, muitos estão aderindo à bicicleta para se locomover nas cidades e, quando isso não é possível, optam por transporte público ou carona solidária. O movimento mundial de ações humanitárias desloca jovens da classe média e alta para regiões e comunidades em estado de penúria ou calamidade natural. Muitos abrem mão de suas férias para oferecer ajuda aos necessitados. O mesmo podemos observar em empresários bem-sucedidos ou famílias abastadas que criam fundações de amparo, projetos de empreendedorismo ou assistência direta, e se envolvem pessoalmente nas ações, antes delegadas a entidades religiosas ou do terceiro setor.
A resposta para nossos dilemas está no desprendimento, na simplicidade, na liberdade (material, espiritual, de valores e sentimentos)?
Talvez as respostas passem também pela ampliação de nossos conhecimentos. As visões sistêmicas que hoje estão permeando a biologia, a antropologia, a medicina e mesmo a educação são unânimes em apontar a necessidade de integrarmos natureza e cultura, corpo e mente, matéria e espírito. Sabemos que essa separação ou fragmentação da realidade foi uma armadilha montada pela nossa arrogância, cujas consequências estamos procurando reparar.
A suposta riqueza que geramos acaba por empobrecer nossas vidas.”
Lia Diskin
O ser humano se distanciou do essencial, da sua natureza, do contato com o meio ambiente, e acabou se perdendo em meio a isso. Existe um movimento de retorno? Quais as consequências disso?
Sim, existe um movimento visível de retorno. Você pode vê-lo refletido no lugar menos esperado: na publicidade. A oferta de produtos hoje está associada a uma mensagem, nem sempre autêntica, mas que afirma a responsabilidade com o meio ambiente, o benefício social que promove, o respeito com o consumidor, destaca os valores familiares, o cuidado, a dimensão afetiva, condena o desperdício e busca um vínculo de fidelidade. Esse é um repertório novo, muito menos impositivo, mais humilde e consciente do poder que o consumidor detém.
Algumas pessoas defendem que, com algumas adaptações, é possível tornar nosso estilo de vida mais sustentável, mas ainda mantendo princípios como o consumismo e a busca pela riqueza e conforto. Isso parece um pouco contraditório. É possível?
As mudanças duradouras nunca são radicais – ao menos é isso que nos mostra a história. E as mudanças acontecem, de fato, quando a realidade impõe dinâmicas que não conseguem se sustentar através dos processos ou ações vigentes. Portanto, a criatividade, a capacidade de inovar e confiar na experiência adaptativa de nossa espécie e de qualquer ser vivo podem contribuir para minimizar as resistências a tais mudanças, que possam a ser vistas não como ameaça, mas como adaptação necessária ao crescimento e ampliação de conhecimentos.
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Segundo Lia, a violência do século 20 devastou as populações material e espiritualmente. Nesse cenário surgiram os primeiros estudos sobre a paz 
Apesar desse cenário, também vivemos um momento em que diversas manifestações mundiais apontam para uma vontade coletiva pela cultura da paz. Algumas coisas parecem estar mudando. Existe algum dilema existencial nisso? De um lado, a ânsia pelo consumismo e prazer imediato, do outro, aspirações coletivas em busca da paz e equilíbrio com o planeta...
O século 20 foi, sem dúvida, o mais violento da história humana. Em grande medida pela sofisticação e eficiência que os equipamentos de guerra ganharam, mas igualmente pela presença de três totalitarismos devastadores: nazismo, fascismo e stalinismo. Os três conseguiram a “proeza” de 111 milhões de mortos em combate direto. Cada soldado tem uma rede de relações: ele é filho de alguém, talvez marido, pai de família, possivelmente tem irmãos, amigos e colegas de profissão. Isso significa que muitos milhões mais foram atingidos pelas guerras que se sucederam na primeira metade do século passado.
A violência beneficia a vários setores da sociedade. Contudo, ninguém está seguro ou em paz. Todos nós perdemos.”
Lia Diskin
A Europa inteira ficou devastada, material e espiritualmente. É nesse cenário que começaram a emergir os estudos sobre a paz. Criou-se a Organização das Nações Unidas (ONU) e, poucos anos depois, a UNESCO, cuja missão precípua é educar para a paz, a diversidade cultural, o diálogo entre as religiões e tradições espirituais. É a UNESCO que, na década de 1990, convocou as nações do mundo a refletirem sobre as múltiplas violências diárias que praticamos sem sequer nos apercebermos delas, nem as considerarmos propriamente violências. Humilhar alguém com palavras rudes e ironias, ignorar a presença de pessoas cujas profissões consideramos menores, tais como as que executam serviços domésticos, de limpeza, garis, lixeiros, engraxates, etc. Dar ordens a funcionários de forma autoritária ou chamar a atenção dos mesmos em público. Puxar a orelha ou dar palmada com propósitos “pedagógicos” que resultam em deseducação e expressão de abuso de poder.
Estas reflexões que se organizam em estudos sistematizados estão revelando a invisibilidade de certas violências, que se perpetuam simplesmente porque ninguém as denuncia como tais. Isto, o reconhecimento de comportamentos, atitudes e interações como sendo um obstáculo à convivência saudável e desejável, já é um avanço significativo que temos de celebrar e, mais, promover sua disseminação.
A senhora também já comentou que "a violência é a ausência do direito", e está presente especialmente entre os mais vulneráveis. Existem muitos interesses em manter essa estrutura, e muitos poderes capazes de fazer isso. Como fazer com que os que não conseguem impor seus direitos possam vencer essa situação e acabar com a violência?
Penso que a violência beneficia a vários setores da sociedade: desde logo a indústria bélica, a indústria farmacêutica que lucra cada vez mais com os antidepressivos e correlatos, os produtores de bebidas alcoólicas cuja ingestão abusiva provoca alterações comportamentais que dão a sensação de força, coragem, expansão e perda de medos ou escrúpulos (e, portanto, preparam para a violência). E, nas grandes cidades, a indústria da segurança, cujo crescimento nas duas últimas décadas quase que centuplicou. No Brasil de hoje a segurança privada conta com mais efetivos do que os integrantes das corporações policiais. Aliás, a indústria em geral ganha, pois, como sabemos, um indivíduo fragilizado tende a comprar para compensar suas carências – de segurança, de afeto, de tranqüilidade, etc.
Contudo, ninguém está seguro ou em paz. Todos nós perdemos. Os filhos dos empresários da indústria armamentista também têm de ir à escola, frequentar um clube, ir ao cinema. Esses lugares, por mais exclusivos que sejam, também se tornaram vulneráveis e potencialmente perigosos.
Perceber em profundidade leva a superar “verdades” que se enraizaram através do preconceito através da reiteração pelos meios de comunicação, que distorcem os fatos e caricaturam situações e personagens a serviço de interesses escusos.
O que é “sustentabilidade” para a senhora?
É participar das limitações e oportunidades que nos oferece a teia da Vida e, fazendo eco a Confúcio, quando nos disse: “Nada é o bastante para quem considera pouco o que é suficiente”. É valorizar e agradecer aquilo que se nos oferece com a chegada de cada dia.

EDUCAÇÃO, COOPERAR OU COMPETIR - SEGUNDO HUMBERTO MATURANA

Humberto Maturana e o espaço relacional da construção do conhecimento
Introdução
Muitas são as definições que pretendem explicar o que seja o conhecimento. Certamente, cada uma delas apresenta avanços e limites neste intento. Merecem atenção, entretanto, as definições que, em sua estrutura, histórico de pesquisa e vivência englobam mais amplamente as áreas da vida humana. Atualmente, o pensamento de Humberto Maturana parece ser um dos mais significativos na procura pelo fenômeno do conhecimento. Para este biólogo chileno, o conhecimento é uma construção da linguagem. A noção de linguagem trabalhada pelo autor é a referenciada e construída nas relações, que, por sua vez, são emocionadas. Nos parágrafos seguintes apresento alguns tópicos do pensamento de Maturana a fim de compreender sua inserção no cenário mais amplo da educação e, em particular, na contribuição que oferece à organização do conhecimento que, no espaço escolar, considere a formação do sujeito numa perspectiva mais inteira em sua constituição como tal.
Maturana e sua trajetória
Em seus primeiros estudos de Medicina, no Chile e depois na Inglaterra, Maturana foi mapeando uma compreensão dos seres vivos como “entes dinâmicos autônomos em contínua transformação em coerência com suascircunstâncias de vida.[1] A busca aprofundada desse desejo de compreender melhor a dinâmica do ser vivo levou-o a estudar Biologia em 1956, quando inicia seu doutorado em Harvard. Inicialmente sua busca perquiritória residia na neuroanatomia e fisiologia da visão. Ao longo de seu caminho investigativo foi traçando um quadro mais amplo de seu interesse biológico: o modo de operar sistêmico da neurobiologia e a organização sistêmica dos seres vivos. Mais tarde, suas pesquisas levaram-no à tese de que o visto é especificado pelo operar da retina, e não uma simples abstração do objeto material no qual a visão bate. Começou a por em xeque a noção absoluta da objetividade real. Maturana pauta-se por uma noção da biologia em que as emoções possuem um papel fundamental no desenvolvimento do sistema biótico. Acentuando o papel das emoções no viver humano, foi descobrindo o operar do sistema na construção do conhecimento como ação biológica. Propõe a emoção como o grande referencial do agir humano. 
Na pesquisa do sistema nervoso foi formulando sua idéia de ser vivo como sistemas de organização circular nos quais o que se conserva é a circularidade. Inaugura a concepção de autonomia do ser vivo, aautopoiése. Pensar o conhecimento a partir da autopoiése só é possível se entendemos cada vivente como sistema fechado [2], auto-organizado e auto-organizável. Para Maturana isso só é possível porque cada ser é em relação. O que determina, em última análise, a organização do vivo é sua própria autopoiése. Mas o que desencadeia é a relação que se estabelece entre vivo-meio-vivo. O organismo se autogere, mas só o faz na relação com outros organismos. Isso quer dizer que não é possível determinar quais as ações subseqüentes num processo autopoiético. Mas é possível saber que o vivo age e re-age diante das circunstâncias, já que vai organizando seu conhecer a partir do próprio ato de viver. Prefaciando uma das obras de Maturana, Rabelo comenta a idéia do autor:
Viver e conhecer são mecanismos vitais. Conhecemos porque somos seres vivos e isso é parte dessa condição. Conhecer é condição de vida na manutenção da interação ou acoplamentos integrativos com os outros indivíduos e com o meio(Rabelo, 1998b, p. 08).
Os estudos de Maturana explicitam o sinônimo entre conhecer e viver. A noção de viver-conhecer está diretamente vinculada com o modo de relacionar-se e de organizar-se nessa relação. Não se trata de adaptação ao meio. O viver-conhecer na relação significa, ao mesmo tempo, a criação/recriação desse espaço relacional, e de outros, e a criação/recriação do sistema em relação. Pode incluir, em algum momento, a adaptação, mas vai além dela. 
Nessa relação criativa, meio-sistema, é que emerge o social. E o social é entendido como domínio de condutas relacionais fundadas na emoção originária da vida: o amor. Para Maturana: “A emoção fundamental que torna possível a história da hominização é o amor” (Maturana, 1999, p. 23). Ao falar de emoção o autor não se refere ao que convencionalmente tratamos como sentimento. Emoção, neste caso, “são disposições corporais dinâmicas que definem os diferentes domínios de ação em que nos movemos” (Maturana, 1999, p. 15). Assim entendida, a emoção fundante do social - o amor - é elemento estrutural da fisiologia humana. Maturana afirma que o amor é a emoção fundante do social porque:
O amor é a emoção que constitui o domínio de condutas em que se dá a operacionalidade da aceitação do outro como legítimo outro na convivência, e é esse modo de convivência que conotamos quando falamos do social (Maturana, 1998b, p. 23).
Pensada por esta via, a convivência, que é este espaço/tempo das relações dos sistemas, é “lugar” de perene criação/recriação da vida, na medida em que se constitui como social na perspectiva acima mencionada. O viver-conhecer, nesta convivência, é constante atualização do sistema. Decorre daí a possibilidade de pensar o processo educativo do sujeito como construção de uma autonomia relacionada. No sentido de que cada qual é tido como um legítimo outro no conviver. Por isso: “toda história individual humana é a transformação de uma estrutura inicial hominídea fundadora, de maneira contingente com uma história particular de interações que se dá constitutivamente no espaço humano” (Maturana, 1998b, p. 28). É nessa consideração do humano como autônomo nas relações que Maturana encaminha uma noção de educação como vivência das relações mesmas dos indivíduos, nos presentes históricos de cada qual, capaz de recriar sistema(vivo-humano)-meio.
Os espaços educativos constituem-se em fenômenos sociais que manifestam, com fundamento nas emoções, os pensamentos, os conceitos e os objetivos dos grupos sociais, num processo histórico e relacional, criando realidades que, nesta interação constante, recria os sujeitos dela participantes. Para Humberto Maturana, este agir humano nas relações é cooperativo. Para entendermos essa posição do autor convém uma olhada, ainda que rápida, do cenário que desafia pensadores como Maturana a buscarem alternativas viáveis para a educação que resgate as distintas dimensões do ser humano em sua cultura.

Cooperar ou competir?

É isso que podemos estudar/observar, (im)pressionados pela contribuição da "bio-cognição-emocionada" de Maturana.
  Ao estudá-las, não se pretende padronizar seus critérios para o conjunto da sociedade ocidental, mas, antes, pode-se re-estudar e re-perspectivar os caminhos ocidentais de constituição da subjetividade humana e também da noção de evolução progressiva.Uma das características que compõe o cenário da argumentação crítica da segunda metade do século XX, e que pode ajudar nesta reflexão, é a relação estabelecida entre habitante e habitat, entre ser humano e seu planeta. A crítica a noção de progresso como algo que cinde ser humano e natureza encaminha para a valorização das culturas tidas e ditas como primitivas. Não se trata de sobrepor uma cultura à outra. A questão situa-se na forma de relacionar-se e produzir de um modo sistêmico valorativo. Isso quer dizer que, nesses modos de operar, estas culturas não lidam com o esgotamento da fonte produtora dos bens de subsistência, nem convivem com a distinção dos modos de operar dos processos de integração na cultura. Ou seja, o aprender, o trabalhar, o brincar, fazem parte do mesmo fenômeno de relação do ser humano com seu espaço vital. Repito que não se trata de idealizar esta forma de viver como solução para os problemas que vivemos em nosso modo de operar. No entanto, é preciso observar nessas culturas – que são ecossistêmicas - a inexistência de depredação, no sentido de irreversibilidade do sistema biótico do meio, e as mudanças atinentes ao desenvolvimento. A noção de desenvolvimento não é progressiva, no sentido de que uma ação tenha de sobrepujar outras para ser considerada válida para o grupo social, mas reciclável e integrativa, por trabalhar a relação ser humano e natureza como modo de operar imbricados. Em outras palavras, é preciso observar nessas culturas um modo de desenvolvimento auto-sustentável. Decorre daí um processo educativo também integrado a esta intencionalidade.
Numa noção de progresso como produção e consumo, na naturalização do acúmulo, da propriedade privada e do bem estar, o Ocidente foi refutando, por este critério, toda produção cultural de um sem número de grupos humanos. A partir de uma visão mercadológica abriu mão da escuta e do diálogo com estas civilizações, com sua História e impôs uma ditadura do padrão de consumo e da competição.
Para Maturana a educação para a competição não se constitui em um exercício de caráter natural/biológico, em sua constituição, mas é algo construído culturalmente. Para ele: “a competição não é nem pode ser sadia, porque se constitui na negação do outro (...) A competição é um fenômeno cultural e humano, e não constitutivo do biológico” (Maturana, 1998b, p. 13). 
A partir daí, por decorrência óbvia, os processos educativos competitivos e, por derivação, que ensinam a competição, são processos que afastam o ser humano da natureza. E o fazem não somente porque, do ponto de vista social, exclui o outro de determinado processo, mas porque desconsidera o outro como legítimo outro, já que estabelece o espaço pelo qual compete como a única possibilidade de manifestação de alguém como sujeito. Alijando-o não somente de determinado espaço eleito como digno, mas de sua condição de quem pode dizer sua palavra.
A educação para Maturana
Acreditando na perspectiva do humano como integrado com seus pares, biodiversificados, a concepção educacional de Maturana busca resgatar a vida como centro de todos os processos sistêmicos. Do ser humano enquanto sistema que se espraia na cultura, na convivência. Pensa e desafia-nos a buscar uma educação que resgate a bio-centralidade. O lugar da vida e da amorosidade nos relacionamentos e ações dos viventes.
Um fio condutor que nos ajuda ir refletindo a educação e a prática educativa é a mudança na finalidade da educação, passando da busca mercadológica como objetivo educacional para a melhor qualidade do conviver humano, da qual o trabalho é decorrência, criação e não fim.
A educação sempre é para que. Os grupos humanos, por situações diversas, vão pontuando, consciente ou inconscientemente, seus objetivos do educar. Para Maturana isso se dá de uma forma intersubjetiva. Em outras palavras, as ações são construídas nas ralações, mas de uma maneira autônoma e partilhada ao mesmo tempo. Atribui grande importância ao relacionar-se, mantendo a responsabilidade do sujeito por suas decisões. Por isso afirma que:
Nós, seres vivos, somos sistemas determinados em nossa estrutura. Isso quer dizer que somos sistemas tais que, quando algo externo incide sobre nós, o que acontece conosco depende de nós, de nossa estrutura nesse momento, e não de algo externo (Maturana, 1998b, p. 27).
Quando Maturana fala em sistema determinado está se referindo a uma construção estrutural que vem se constituindo historicamente no próprio processo vital do sistema, enquanto linhagem e enquanto indivíduo. Ao dizer que os sistemas vivos são determinados não quer dizer pré-determinados. O que ocorre é a constante autogeração do sistema em relação com suas circunstâncias. Como o processo de determinação estrutural é constante, é ele, enquanto sistema, que determina, no momento em que uma ação incide sobre ele, sua própria ação.
Autonomia não significa isolamento. Quando afirma que, pela autopoiése, é o próprio sistema que determina a ação não está afirmando que este agir seja isolado de outras intervenientes. Ao contrário, para Maturana, a ação é congruente. É de acordo com a relação estabelecida, mas, a ação como tal, particular, não é determinada por ela.
Essa relação do sistema com o meio cria a linguagem. O autor vê a linguagem não como uma estrutura cerebral, mas como construto das relações do ser humano com os outros. “Reconheço também que a linguagem não se dá no corpo como um conjunto de regras, mas sim no fluir em coordenações consensuais de conduta” (Maturana, 1998b, p. 27). Aponta, assim, para um caminho que valoriza os processos de relacionamento em detrimento de uma concepção cristalizada e fixa de linguagem, e do conhecimento construído a partir dela, como elaborações acabadas do cérebro humano.
As relações consensuais de conduta não se tratam de paridades conceituais dos envolvidos na ação como elaboração verbal, da fala, mas se trata da construção de compreensões em torno de um fenômeno comum que vai se interpretando de acordo com a própria história construída em torno dele e da história estrutural do sistema interpretante. Por isso, a linguagem como relação possui uma singular importância nos processos educativos. Estes, por sua vez, deixam de ser atividades depositadoras de informações passando a constituir-se em exercício de conversa. Entendo, assim, a conversa como forma inclusiva e extensiva do diálogo. 
Para Maturana a conversa, na ação educativa, é elemento central na relação que produz o conhecimento. Para ele: “A palavra conversa vem da união de duas raízes latinas, ‘cum’, que significa ‘com’, e ‘versare’, que significa ‘dar voltas’, de maneira que conversar, em sua origem, significa ‘dar voltas com’ outro” (Maturana, 1998a, p. 80). A conversa constitui-se, assim, em um espaço relacional por excelência na ação educativa.
Se entendermos a importância do processo relacional na ação educativa, se a formação do outro como totalmente outro se constitui como objetivo da educação, então é preciso repensar as interações em que o educando possa confrontar-se como autônomo nas ações relacionais e construa sua autoconsciência, que se exercita na relação. Para Maturana:
A autoconsciência não está no cérebro – ela pertence ao espaço relacional que se constitui na linguagem. A operação que dá origem à autoconsciência está relacionada com a reflexão na distinção do que distingue, que se faz possível no domínio das coordenações de ações no momento em que há linguagem. Então a autoconsciência surge quando o observador constitui a auto-observação como uma entidade ao distinguir a distinção da distinção no linguajar (Maturana, 1998b, p. 28).
A autoconsciência aparece aqui mais abrangente do que uma concepção de autoconsciência como consciência de si enquanto si mesmo. Passa a ser uma consciência de si na relação, já que na relação é que se estabelece a identificação do outro como legítimo outro. O conhecimento passa a ser compreendido como organização do vivo nas relações que vai vivenciando, como fenômenos. O próprio ato de conhecer-viver se constitui em uma leitura da relação cognoscente-vivente. Por isso, nesta perspectiva, o conhecer-viver é elemento fundamental no processo de conscientização.
Nessa responsabilidade autônoma-relacional do sistema como construtor de si mesmo se estabelece uma novidade perene nas ações interativas na linguagem. Por isso “o futuro de um organismo nunca está determinado em sua origem” (Maturana, 1999, p. 29). Tal perspectiva ancora uma educação continuamente criada e criadora do conhecimento-vida. Para Maturana:
O educar se constitui no processo em que a criança ou o adulto convive com o outro e, ao conviver com o outro, se transforma espontaneamente, de maneira que seu modo de viver se faz progressivamente mais congruente com o do outro no espaço de convivência (Maturana, 1998b, p. 29).
O pressuposto da afirmação da centralidade do conviver no processo educativo reside no fato de este conviver não constituir-se simplesmente em estado. No sentido de ter dois ou mais sujeitos intocáveis e refratários um ao lado do outro. Trata-se de uma relação, no sentido de um ser tocar o outro ser nesse contato. Porque há relação há, por conseguinte, modificação, mais ou menos perceptível, dos sujeitos envolvidos nela. A congruência reúne os modos de proceder nessa relação que tornem as ações compreensíveis aos integrantes desse lugar de convívio e que, em aspectos centrais, possuem um fim comum. A congruência, portanto, se dá na linguagem.
Faz-se necessário aqui lembrar a concepção de linguagem não mais como sistema cerebral. Considero aqui linguagem como espaço construído por ações que se tornam comuns. Repito, em outras palavras, que esta comunicação não se trata da aceitação de mesmos conceitos. Trata-se de estabelecer o espaço de ações que, por lidarem com elementos comuns da linguagem, são consensuais. A noção corrente de linguagem lida com os pressupostos da racionalidade e da estrutura cerebral lingüística como lugar de leitura e interpretação dos signos. Para Maturana não é mais a razão que fundamenta e embasa as ações e a comunicação, mas sim a emoção, que não pode ser abarcada pela linguagem enquanto construção racional, mas pela linguagem construída nas coordenações de ações consensuais.
O educar deixa de ser entendido como um ato da fala enquanto apresentação de quem domina certas informações pronunciadas como verdades e passa a constituir-se em comunicação de sistemas viventes nas ações comuns. Na primeira o acento se dá no aspecto doutrinal da pronúncia. Na visão de Maturana, da educação como convívio, a congruência, que é a comunicação mais possível inteira do ser humano, é que vai construindo os critérios de validade para a maior qualidade do conviver. Não se trata de negar a autoridade de quem fala, mas, ao contrário, possibilitar-lhe pleno sentido porque a fala passa a ser, no conviver, a ação do dizer desde a autoridade, portanto, uma autoria.
Outro aspecto importante a considerar é a permanência do processo educativo. Não existe intervalo no ato de educar no conviver. O ato pedagógico é assim entendido como toda ação que alguém realiza no conviver. Ao contrário de dispensar a especificidade pedagógica esta perspectiva pretende tornar os espaços artificiais de educação mais plenos das experiências do conviver. Os espaços artificiais de educação são aqueles criados pelo grupo social para além do convívio do núcleo familiar ou tribal próprios do ser humano. Valorizar e possibilitar a plenificação do conviver nos espaços educativos é caminho para existencializar o conhecer-viver e assumir a cultura como uma das dimensões do convívio de tal modo que se torne – ela, cultura – cada vez mais humanizante, já que, ao mesmo tempo, é comunicada aos sujeitos e transformada por eles na congruência. Nesse sentido, no processo educativo, “ocorre como uma transformação estrutural contingente com uma história no conviver, e o resultado disso é que as pessoas aprendem a viver de uma maneira que se configura de acordo com o conviver da comunidade em que vivem”(Maturana, 1998b, p. 29). 
No conviver como processo educativo, a transformação estrutural se dá a partir da compreensão sistêmica do estrutural. Em vista disso, qualquer ação comunicada interfere na totalidade do sujeito. Por isso a mudança é estrutural. É contingente porque não nega a circunstancialidade, ao contrário, apropria-se dela para transformar-se e transformá-la. E, além disso, não despreza o acúmulo que as experiências anteriores do conviver lhe ofereceram, pelo contrário, as considera como elementos constitutivos no novo ato do conviver.
À guisa de conclusão
Conceber o conhecer-viver nas relações, no convívio, como produto/produtor de novos conheceres-viveres e do espaço das relações onde este se dá implica em pensar a organização do ensino de modo que privilegie o convívio como espaço denso desse viver-conhecer. No agir comum da sociedade contemporânea, que guarda a noção de organização como sinônimo de compartimentalização, esta organização que pressupõe autorias no ato de conhecer-viver pode parecer um tanto difícil. Num primeiro momento a noção de autoria pode parecer-se com espontaneísmo. A primeira concebe o sujeito como virtuoso no seu dizer sobre o mundo. A segunda considera, simplesmente, qualquer dizer como válido por si, incorrendo no mesmo equívoco do absolutismo.
Essa mirada diferente sobre os processos educativos compreende uma complexidade de fatores que intervem no momento mesmo do conhecer e do sistematizar esse conhecimento. A história do/s observador/es que olham o fenômeno; a história do fenômeno até o momento mesmo da observação/compreensão de quem o observa; a história, as condições e circunstancias do educador que propõe o processo de encontro entre o conhecedor e o fenômeno. Para Maturana “os educadores, por sua vez, confirmam o mundo que viveram ao ser educados no educar” (Maturana, 1999, p. 29). Em vista disso o educador/a também é um auto-observador constante de si e suas ações na ação educativa.
Assim compreendida a educação deixa de ser uma seqüência de atos estanques, sem significados por si mesmos, e passa a ser uma ação contínua, durante toda a vida. O que requer pensar os tempos/espaços pedagógicos.
Presentación. Discurso proferido por Maturana por ocasião do recebimento do Prêmio Nacional de Ciências 1995. Universidade do Chile. (voltar)
Ao falar em “sistema fechado” o autor se refere aos seres vivos. Esta noção de sistema está imbricada com a autopoiese. A autopoiese é a qualidade do ser vivo em “especificar e produzir continuamente sua própria organização através da produção de seus componentes” (Maturana, 1997, p. 71). Usa o termo “fechado” no sentido de que as relações de componentes “que a definem (a máquina autopoiética) sejam continuamente regeradas pelos componentes que produzem” (Maturana, 1997, p. 71). Num sentido bio-materialista o sistema (vivo) é fazedor do sistema mesmo. Isto é: refeito, o sistema é, num plano interativo, mais complexo. Não se trata de uma contraposição a “aberto”, no sentido de relações com o meio, mas fechadas são as macro condições dessa relação. Fechado quer dizer que o sistema mesmo é dotado de mecanismos de autosustentação, protosustentação e retrosustentação. (voltar)
Saiba mais
MATURANA, R. Humberto. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. São Paulo: Psy, 1995.
____. Da biologia e psicologia. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998a.
_____. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: UFMG, 1998b.
_____. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
_____.De máquinas e seres vivos, autopoiese: a organização do vivo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997a.
_____. A Ontologia da Realidade. Belo Horizonte: UFMG, 1997b. 
MATURANA, Humberto; REZEPKA, Sima Nisis de. Formação humana e capacitação. Petrópolis: Vozes, 2000.
Prof. MSc. Adriano J. H. Vieira é professor da Universidade Católica de Brasília. 

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Se dirigimos nossa indignação ao alvo errado, isto é, se combatemos o agressor, em vez de combater a agressão, perdemos a oportunidade de estabelecer uma nova relação com o outro. Além de, em grande parte dos casos, alimentarmos o ciclo vicioso da violência, quando a vítima reage, se tornando um novo agressor





“O primeiro princípio da ação não-violenta é a
não-cooperação com tudo que é humilhante”
Mahatma Gandhi




Gandhi costumava dizer: “Pode-se garantir que um conflito
foi solucionado segundo os princípios da não-violência se não
deixa nenhum rancor entre os inimigos e os converte em amigos”.
Embora pareça apenas um conjunto de palavras bonitas, essa
diretriz foi testada na prática, com muitos de seus oponentes, que
se tornaram seus admiradores e até colaboradores.
Não é fácil dominar a própria violência, até porque não é
fácil reconhecer que somos potencialmente violentos — seja em
pensamentos, gestos ou omissões. Sempre arranjamos boas
justificativas para nossas atitudes. “Você foi injusto comigo”,
“invadiu meu espaço”, “me traiu”. Essas são queixas que temos dos
outros e os outros, de nós. Se compreendermos isso, se aceitarmos
que nem sempre estamos com a razão, faremos cobranças (aos
outros e a nós mesmos!) mais justas e mais humanas.
Como um bumerangue que volta ao ponto de partida, o uso
da violência para compensar frustrações e desapontamentos
resulta em sentimentos de impotência e em mais frustração. Ao
agredir alguém, damos a essa pessoa o direito de nos agredir
também, e acabamos por “armar” o outro com os mesmos
instrumentos dos quais queremos nos desvencilhar.
Esse círculo vicioso só se quebra se resistirmos ao ímpeto
emocional, ao ódio e à raiva — barreiras que ofuscam sentimentos
preciosos como a compaixão, a solidariedade e a capacidade de
perdão. “Perdi a cabeça”, “fiquei fora de mim”. Não são essas as
expressões que usamos toda vez que agredimos alguém? E o que
elas querem dizer? Que reconhecemos ter agido por impulso, de
modo irrefletido e ignorante. Mais ainda, que não aceitamos esse
comportamento como digno de nós mesmos — e, igualmente, não
o aceitamos no outro.
Nós humanos, assim como os primatas, somos sensíveis ao
princípio de empatia, uma espécie de tendência para se colocar no
lugar da outra pessoa. Esse sentimento nos faz solidários ao
sofrimento das outras pessoas, sobretudo se formos nós os agentes
dessa aflição. Nessas circunstâncias, experimentamos um misto de
arrependimento, vergonha e compaixão. Pensamos em fazer
qualquer coisa para voltar atrás e evitar o acontecido. Tal
sensação, apesar de dolorosa, mostra a aspiração natural de não
desejar prejudicar ninguém.
A violência, entretanto, nem sempre tem um alvo preciso ou
um agressor identificável. Há violência nos preconceitos que
impedem uma pessoa de exercer seus direitos e desenvolver suas
potencialidades pelo simples fato de ter uma raça, um gênero,
uma cultura, uma condição social, uma religião, uma capacidade
física especial. Há violência nos sistemas políticos e econômicos
que reforçam disparidades de oportunidades, erodindo o tecido
social e gerando exclusão, desemprego, miséria e indignidade.
Há violência nos desvios de recursos públicos que deveriam
promover plena sociabilidade, fundada na segurança que nasce da
liberdade e da igualdade de acesso aos bens naturais e culturais
que são patrimônio de todos — e não apenas de alguns. Há
violência nos discursos que domesticam e criam resignação, ao
repetir uma e outra vez que "o mundo é assim mesmo, sempre
houve guerra e injustiça", desencorajando qualquer proposta nova
de organização social e de uma cidadania ativa e responsável.
A violência não é uma expressão de justiça, de felicidade,
nem de amizade. Estas promovem o acolhimento e a troca, buscam
o convívio, o estar junto para partilhar e aprender, para criar,
desafiar e construir futuros nunca imaginados, mas sempre
possíveis. Esse desejo foi, até agora, o sustentáculo da nossa
espécie — o que confirma e renova a nossa esperança.
Lya Dinkin